A cada certo tempo ressuscitam a velha polêmica sobre o final que C. S. Lewis dá a personagem da Susana no último livro da saga de Nárnia, A Última Batalha. Entre os escritores que já se mostraram incomodados com isto estão Neil Gaiman (de Sandman, Deuses Americanos e Belas Maldições) e J. K. Rowling (de Harry Potter, Animais fantásticos e onde habitam e Morte Súbita), entre outros. Mas, é preciso entender o contexto em que a decisão de Lewis acontece dentro da história e o que motivou o autor a dar o trágico destino à personagem.
O que acontece nos livros? (Spoilers)
No final de A última batalha, muitos dos personagens que conhecemos durante a saga são reunidos no País de Aslam, o equivalente a um paraíso pós-vida, após o leão encerrar a história de Nárnia, numa espécie de Apocalipse daquele mundo. Cada um deles chega lá de uma forma diferente. No caso dos irmãos da Susana (o Pedro, a Lúcia e o Edmundo), a sua chegada naquele local se dá após sofrerem um acidente de trem, mas Susana está ausente, pois havia se afastado deles e não se considerava mais ‘uma amiga de Nárnia’. Se interessando mais “em lingeries, maquilagens e compromissos sociais”, pois:
“Quando estava na escola, passava o tempo todo desejando ter a idade que tem agora, e agora vai passar o resto da vida tentando ficar nessa idade. Tudo em que ela pensa é correr para atingir a idade mais boba da vida o mais depressa possível e depois parar aí o máximo que puder,” diz Polly sobre ela.
Susana, até onde sabemos, terminou o ensino secundário em 1945. E durante os anos seguintes, ela começou a perder a fé cada vez mais na magia que havia conhecido, chegando até mesmo a negar que Nárnia sequer havia existido. Ela passou a dizer a seus irmãos que tudo não havia passado de uma brincadeira de infância, e se recusou a acreditar neles ou em Aslam.
Depois, quando ela tinha 21 anos, seus irmãos, juntamente com seu primo Eustáquio, morrem no acidente de trem mencionado acima. Após isso, o autor não nos dá informações sobre o que aconteceu com ela, apesar de podermos especular.
As polêmicas
Uma das principais acusações realizadas a C. S. Lewis por haver excluído Susana do ‘paraíso’ em “A Última Batalha” é que ele fez isso motivado por sexismo. Já que ela, supostamente, estava interessada em ‘batons e rapazes’, ou seja, ‘coisas de menina’, e que isso a teria feito indigna de um final feliz.
J. K. Rowling é uma das que entende o final da história desta forma. Em uma entrevista para a revista Time, ela disse que leu parte de Nárnia, mas que “chega um momento em que Susana é dada como perdida pra Nárnia porque se interessou em batons. Ela se torna irreligiosa basicamente porque descobriu que existe o sexo. E eu tenho um grande problema com isso.” Mas, apesar da Rowling ter compreendido erroneamente que o problema de Susan é que ela agora tinha ‘descoberto que podia sair com meninos’. Isso não é sequer mencionado nas Crônicas, como vimos no trecho acima, ou como pode ser visto numa leitura atenta do trecho em que seu afastamento de Nárnia é explicado no livro.
Neil Gaiman compartilha da problemática, e tenta dar outro destino para a personagem em seu livro “Coisas frágeis”, em um conto chamado “O problema de Susan”. Nele, o autor britânico fala que “todas as outras crianças vão para o Paraíso, e Susan não pode ir. Ela não é mais amiga de Nárnia só porque gosta demais de batons, collants e convites para festas”. Mostrando que ele também interpretou que o problema da Susana eram seus gostos pessoais, e não o que os motivava de verdade, como veremos adiante. Mas antes de falar sobre o que Lewis realmente quis dizer, podemos ver que já havia uma preocupação nisso nos filmes lançados entre 2005 e 2010.
As adaptações realizadas pela Walden Media juntamente com a Disney e com a 20th Century Fox provavelmente já estavam preparando uma justificativa diferente para o afastamento dela de Nárnia, uma mais palatável ao público moderno. Ao incluir na história um romance da Susana com o Príncipe Caspian, os filmes poderiam dar a entender que uma das motivações para a Susana se esquecer de Nárnia poderia ter sido a sua decepção amorosa ao saber que não poderia ter um relacionamento com o Príncipe. E em complemento a isso, a própria atriz que protagonizou o papel de Susana nestes filmes, Anne Popplewell, disse em um podcast que ‘o ceticismo da Susana foi levado em conta durante os filmes.’ E toda vez que ela está em Nárnia, ela interpretou a personagem como alguém que estava resistindo a se comprometer totalmente com aquele mundo.
O que realmente Lewis quis dizer?
Legenda: Susana se olhando no espelho
Ao ler os livros, vemos que Susana sempre foi uma personagem mais prática e madura que seus irmãos. Ela sempre esteve nesse desafio interno de ter que crescer rápido demais e se mostrar como alguém mais adulta. E durante a Segunda Guerra Mundial, quando os irmãos precisam ir para o interior da Inglaterra sob ordens do governo para fugir dos bombardeios nazistas, é ela que toma o papel maternal entre os irmãos.
Tudo isso pode ter motivado ela a querer se afastar das coisas da infância e crescer mais rápido que eles quando voltou para a Inglaterra após as viagens à Nárnia. Ela ficar pensando em lingeries, maquilagens e compromissos sociais não significa que seu problema foi gostar de ‘coisas de meninas’, mas todas essas coisas são uma expressão externa de uma motivação diferente. Ela preferiu negar Nárnia e abraçar uma vida social ativa porque realmente acreditava que era isso que seria uma boa vida para ela, seria o que ela estava buscando desde o início: ter aprovação dos outros, ter bom status social e se sentir superior aos irmãos, que ‘ainda pensavam em coisas da infância’.
Ao olharmos o contexto, não faz sentido acusar C. S. Lewis de sexismo ao deixar Susana fora do país de Aslam, já que outras mulheres entram no país de Aslam e têm papéis de destaque (inclusive maior que o de personagens masculinos) durante toda a saga, como nos casos de Giu, Polly e Lúcia.
É bom recordar que a acusação de que Lúcia estava inventando coisas por ser uma criança também foi feita por Edmundo em “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”. Ou seja, a negação de Nárnia como ‘uma brincadeira’ não é algo que vem só de Susana, mas também já foi feita por seu irmão por motivos diferentes. A irmã estaria cometendo o mesmo erro que o irmão já cometeu.
Então, por que a escolha de uma mulher para representar alguém que conheceu Nárnia e não foi com os irmãos ao País de Aslam?
Pelo que conhecemos dos personagens, cada um ali tinha seus motivos para acreditar ou não em Nárnia e em Aslam. Mas no caso de Susana, o seu desejo de ‘deixar as coisas de criança’ e se envolver mais com a sociedade são motivadores mais fortes e claros do que o que acontece e do que conhecemos de seus irmãos.
Lúcia, por exemplo, sempre é vista como alguém de fé que dá os primeiros passos em direção a Aslam. Edmundo poderia ser um candidato, mas tendo já aprendido a lição de não infantilizar a sua irmã, passaria por uma regressão narrativa se ele fizesse isso novamente em “A última batalha”. E Pedro sempre foi o primeiro a defender Lúcia em diversos momentos, mesmo quando não tinha muitas razões para acreditar nela. Já Susana é a primeira a acusar Lúcia de estar imaginando ver Aslam em “Príncipe Caspian”, por exemplo, enquanto Pedro e Edmundo estão dispostos a acreditar em sua irmã mais nova ao terem aprendido que ela tinha uma conexão mais próxima com ele em “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”. Mas há um momento ainda mais revelador da essência de Susana que prepara o caminho que ela tomou no último livro da saga. Também em “Príncipe Caspian”, quando Aslam finalmente se mostra aos irmãos Pevensie, ela reconhece que tinha acreditado que Aslam tinha aparecido antes, mas não queria admitir: “no fundo acreditei… Ou podia ter acreditado, se quisesse,” confessa. Ou seja, ela já era alguém que apresentava dificuldades em acreditar e reconhecer Aslam desde, pelo menos, aquele livro da saga.
Em complemento a isso, há outra evidência que a escolha de Susana não tem nada a ver com o fato dela ser menina, mas é uma personificação da própria jornada do autor. Lewis pode estar projetando nela aqui o que aconteceu com ele mesmo entre sua adolescência e juventude, quando ele se tornou ateu e negou a fé por um grande período de sua vida adulta. Assim como Lewis colocou parte de sua história na dor e desespero que Digory demostra por sua mãe doente em “O sobrinho do mago”, ele estaria projetando o que aconteceu com ele mesmo ao abraçar o ceticismo na personagem da Susana.
Também existe uma conexão temática com algo que Lewis alerta em seus livros de não ficção. Há toda uma ironia de Susana querer se mostrar mais velha, mas estar agindo de forma infantil ao negar parte do que conheceu como verdade quando era mais jovem. O seu desejo de querer ser adulta demais era, no fundo, um desejo infantil. Isso ressoa muito com o Lewis vai dizer no artigo ‘Três maneiras de escrever para crianças’, onde ele fala que críticos que acham que histórias ‘infantis’ não podem ser lidas por adultos provavelmente tem dificuldades em se entender como adultos de verdade, porque “a preocupação em ser adulto o tempo todo são marcas da infância e da adolescência.” Enquanto alguém que já é adulto pode ver todas aquelas coisas do mesmo jeito sem se preocupar em perder sua maturidade. E é exatamente assim que a Susana está tentando se provar em Nárnia. “Quando estava na escola, passava o tempo todo desejando ter a idade que tem agora, e agora vai passar o resto da vida tentando ficar nessa idade”, como Polly diz sobre ela.
Por último, o fato de Lewis não comentar o destino dela após o acidente de trem também não significa que ela nunca voltou a ser uma ‘amiga de Nárnia’, as portas continuaram abertas. Diferente do mundo de Nárnia, que foi encerrado por Aslam, a história após o acidente de trem continua. E ela pode ter tido outras oportunidades de se lembrar quem Aslam realmente é em nosso mundo. Dessa forma, assim como aconteceu com Lewis de redescobrir a fé mais tarde em sua vida, talvez após o acidente ou em um momento posterior a Susana possa ter finalmente reconhecido Aslam e se lembrado em seu coração do velho adágio que diz que: ‘quem é coroado rei ou rainha em Nárnia será para sempre rei ou rainha de Nárnia’.
Sobre o autor:
Este texto foi escrito por Rilson Joas
Rilson Joás é formado em Jornalismo e estudante de Ciência da Computação. E também alguém que sobe na Tardis dia ou outro para conhecer os mais diversos mundos estranhos e fantásticos, e voltar para a vida diária com pelo menos 6 centavinhos a mais de encanto.
Este texto foi revisado por Lino
Show! Texto necessário, principalmente tendo em vista a nova adaptação de Nárnia que está pra ser produzida. Valeu, Rilson!
Sempre pesquiso sobre esse assunto quando me lembro de Nárnia, o final da Susana sempre me incomodou pois acho um final muito triste, ter perdido a família e se afastado de Aslam. No entanto nunca acreditei que ela foi excluída de Nárnia só por gostar de coisas de garotas pra mim foi só críticas de personagens que não eram do convívio diário dela só estranhei os irmãos não falarem nada a respeito. Mas gostei do seu texto.🙂
Achei perfeito a sua comparação, usarei como uma das referencias em meu TCC, para apoiar a minha ideia de que Susana é realmente uma personificação do próprio Lewis.
Obrigado!