“Tratei cerca de 6 mil pacientes, talvez 10 mil. Depois disso, não quis continuar a minha carreira. Todas as pessoas que eu vi morreram, uma após a outra. Não consegui salvar ninguém.“
Essa frase foi dita pelo médico japonês Shuntaro Hida, que pôde testemunhar a explosão da bomba lançada sobre Hiroshima na manhã de 6 de agosto de 1945. Na noite anterior, ele precisou atender a uma emergência médica numa vila próxima a Hiroshima. Ao deixar a cidade, escapou do bombardeio que matou mais de 70.000 pessoas.
Ler uma citação como a do início deste texto pode despertar a nossa curiosidade. Eu mesmo, quando a li pela primeira vez num artigo sobre o bombardeio das duas cidades, fui procurar sobre o Dr. Hida para entender melhor o que ele testemunhou e como isso o impactou, a ponto de dizer a frase que abre este texto.
O mesmo ocorreu com um dos autores desta Graphic Novel. No posfácio da obra, Alcante diz que “é preciso haver uma fagulha inicial que, atiçando a nossa imaginação, nos leve a escrever um roteiro”. No caso dele, foi a sombra de um desconhecido, agora gravada perpetuamente nos degraus das escadas de um banco, consequência da explosão que desintegrou o seu corpo. Essa visão fez com que Alcante começasse a pesquisar e documentar fatos sobre a Segunda Guerra, que, quando ele se tornou roteirista, serviram de base para iniciar um romance gráfico.
A Bomba, publicada no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, é o resultado desse trabalho. Publicada originalmente na França pela editora Glénat, foi escrita pelos roteiristas Didier Alcante e Laurent-Frédéric Bollée, e ilustrada pelo canadense Denis Rodier. Nela, acompanhamos os eventos que levaram ao desenvolvimento da primeira bomba atômica, iniciando na década de 1930 e indo até o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
Em relação à parte histórica, a obra apresenta todo o cenário, os principais atores, o desenvolvimento e as consequências dessa tragédia. Ela detalha bem o contexto geral que levou à criação da bomba,a escolha dos alvos e às operações paralelas que aconteceram nesse período. Aqui encontramos figuras conhecidas, como Robert Oppenheimer e Leo Szilard, e menos conhecidas, como Ebb Cade.
Mas o que a torna diferente de outras obras sobre a Segunda Guerra é o seu narrador. Se em obras mais conhecidas temos a descrição dos fatos pelos japoneses (como na narrativa dolorosa de Gen, Pés Descalços) ou, mais recentemente, temos o dilema interno do físico Robert Oppenheimer (que você pode ler mais sobre ele e seu filme clicando aqui, no texto do nosso amigo Chris), aqui o nosso narrador é o urânio, a própria bomba.
Ironicamente, essa dinâmica faz com que o conceito de “Bomb Under the Table” seja muito bem aplicado. Caso você não conheça, em resumo, o conceito de “Bomb Under the Table” do diretor Alfred Hitchcock destaca a diferença entre surpresa (evento inesperado) e suspense (antecipação prolongada) na narrativa cinematográfica, enfatizando a eficácia do suspense em criar envolvimento emocional na audiência. Imagine uma cena em que duas pessoas estão conversando num café. Se de repente uma bomba explodir sob a mesa sem aviso prévio, o público experimentaria surpresa. No entanto, se o público soubesse previamente que a bomba estava lá e que poderia explodir a qualquer momento, eles experimentariam suspense.
Como a narrativa segue na perspectiva da bomba, o leitor fica constantemente imerso nesse jogo de suspense. Mesmo sabendo do resultado (recomendo veementemente que você não dê aquela espiada nas últimas páginas), observar como a bomba se relaciona com outros personagens, que não estavam diretamente ligados ao seu desenvolvimento prático, mas que foram afetados por ela ou participaram de outras linhas de pesquisa, junto com a antecipação do momento trágico que sabemos que virá, é o grande diferencial do roteiro.
E são esses outros personagens que conferem um diferencial adicional à obra, como as tentativas dos esquadrões da Operação Gunnerside de retardar o projeto da bomba alemã, de se, após esse acontecimento, Heisenberg, propositalmente atrasou o desenvolvimento da bomba (deixando essa e outras questões históricas em aberto), bem como a pesquisa sobre os efeitos do plutônio no corpo humano. Isso começa a ser mostrado através da história de Ebb Cade, um operário que sofreu um acidente em Oak Ridge ao se dirigir para as locações do projeto Manhattan, a fim de trabalhar na construção. Ao ser levado para o hospital, ele não recebeu o tratamento para seus ferimentos, mas serviu como cobaia de testes para os militares, ao ter plutônio injetado em seu corpo. Ebb teve todos os seus dentes removidos para observar a progressão da reação. Além dele, mais de outras 18 cobaias humanas, entre 1945 e 1947, tiveram plutônio injetado em seus corpos sem o devido consentimento, com o propósito de observar suas reações e determinar por quanto tempo o elemento permaneceria em seus sistemas. Esse perturbador acontecimento permaneceu oculto até 1994, quando a jornalista Eileen Welsome trouxe à tona o tema por meio de sua matéria investigativa sobre esses experimentos.
Sem muitos spoilers, a ambientação de alguns personagens em Hiroshima remete à fagulha inicial de Alcante, mencionada no início do texto. Ele imagina uma situação hipotética e cria uma narrativa para a pessoa que foi pulverizada pela bomba. Ver as consequências do bombardeio depois de passar um tempo pelas ruas da cidade faz com que o sentimento da monstruosidade desse ato pese ainda mais no leitor. O momento da explosão é terrível, e a arte em preto e branco do desenhista Denis Rodier consegue transmitir esse sentimento de vazio ao longo de toda a obra, e o horror do momento que encerra todo o suspense construído durante a narrativa.
A bomba, em nenhum momento, celebra o que aconteceu. Mesmo que o foco seja na pesquisa e desenvolvimento da arma nuclear, ela nos lembra da capacidade destrutiva do ser humano. A frase dita e muito conhecida através de Oppenheimer pode ser colocada aqui na voz do nosso narrador. A história termina com um lembrete aterrorizante do urânio, da morte, do destruidor de mundos, que nos faz pensar no impacto que essa pesquisa teve nos anos posteriores à Segunda Guerra e como ainda estamos sujeitos às suas consequências:
“Atualmente, nove países detêm armas nucleares, as quais ao longo do tempo se tornaram ainda mais devastadoras. O arsenal mundial possui cerca de 15.000 armas desse tipo, cinco vezes menos do que durante a Guerra Fria, mas ainda suficiente para destruir o planeta inúmeras vezes. Você pensa que minha história acabou? E se ela estiver apenas começando?“.
Sobre o autor:
Este texto foi escrito por Matheus Campos
Matheus Campos é formado em análise e desenvolvimento de sistemas, meio seminarista, viajante da terra média, fã de quadrinhos e acha brega falar de si mesmo na terceira pessoa.
Este texto foi revisado por Camilla
Parabéns!! Você é muito bom em tudo que faz!!