Kafka, Monty Python e o peso do incontrolável

Kafka, Monty Python e o peso do incontrolável

“Alguém certamente havia caluniado Josef K, pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” – O Processo, Franz Kafka

“Desculpe-me fazê-lo esperar, mas receio que minha caminhada tenha ficado mais esquisita ultimamente e acabei demorando um pouco mais.” – Ministry of silly walks, Monthy Python

O que fazer diante de uma situação inextricável? Uma circunstância labiríntica. Não um beco, uma parede monolítica ou uma porta fechada sem trancas. Sim um caminho enigmático no qual cada direção tomada leva a outras igualmente turvas. Não há um término, apenas um cansaço exasperante que pesa gradativamente, até que nós mesmos sejamos o próprio fim e a saída seja apenas parte da ideia que foi no início do enigma, e, quando damos por conta, somos o próprio Minotauro preso no labirinto de Dédalo. O medo e a esperança que, em caminhos esclarecidos, costumam andar a uma distância respeitosa um do outro, começam a se olhar com mais frequência, aproximam-se e tecem uma perigosa dança sobre a linha do equilibrista, até que um deles caia e o outro continue seu balé solitário.

Josef K viveu situação semelhante descrita no romance “O Processo”, de Franz Kafka. No dia de seu trigésimo aniversário, alguns sujeitos entram em seu quarto e, sem ao menos dizerem o por quê, notificam-no de um processo misterioso. A partir de então, Josef K entra em uma obscura vereda para tentar descobrir do que é condenado, como se defender e, consequentemente, ser absolvido. A jornada para a liberdade custa caro, na verdade, custa ainda mais caro pois ele pensava que já era um homem livre, cumpridor de seus deveres legais, a isso Josef se apega a todo instante. Quanto mais se justifica, mais imerso no labirinto ele se descobre. Não é possível descrever um final.

Franz Kafka era um autor nascido na Boêmia, no fim do século XIX, estudou direito e trabalhou em uma burocrática e tediosa companhia de seguros. Sua paixão inata era a literatura. Escrever era a atividade fim em sua vida, por isso, ter de executar tarefas diametralmente opostas ao exercício intelectual da escrita era o espinho em sua carne. Protestava frequentemente em seus diários pois não conseguia dedicar-se inteiramente a seu “chamado” e perdia muito tempo com o “ganha pão”. Apesar de nascer em território tcheco, o idioma usado nas esferas legais e profissionais era o alemão. Assim, Kafka dominava pelo menos esses dois idiomas, mas preferiu redigir na língua germânica. Viveu na época em que fervilhava o existencialismo de Kierkegaard e Dostoiévski, e até mesmo o pessimismo de Schopenhauer.

Uma quebra textual como o parágrafo acima traz certo incômodo ao percurso do leitor, afinal, já estávamos progredindo, em algum nível, no dilema de Josef K.  Imagine, portanto, ler uma obra inacabada e montada por outro que não o próprio autor? “O Processo” era apenas um projeto infindo enquanto Kafka vivia, após seu padecimento, um amigo juntou o que tinha, tentou achar uma ordem coerente e publicou. 

Considere a seguinte metalinguagem entre a obra e seu conteúdo: assim como seu criador, Josef K não consegue encontrar um fim em seu processo legal. No desenrolar do livro, K. permeia as diversas esferas envolvidas em seu processo. Cada passo adiante, mais longe do fim. Personagens excêntricos são colocados como responsáveis pelo trâmite judiciário. Os ambientes são claustrofóbicos, envoltos em uma penumbra constante de dúvidas e incertezas. K. Não sabe com o que está lidando, não sabe em que sua culpa se baseia. Quanto mais busca o entendimento, menos sabe. O desconhecido se agiganta momento a momento, a burocracia é tão labiríntica que, quanto mais K. descobre do processo, menos ele sabe de si mesmo. 

Muitos consideram uma crítica direta à burocracia, o que claramente faz parte da obra. No entanto, Kafka lança mão do aparato burocrático para dar forma àquilo que realmente o atormentava e estabelece um sistema torturante. Em que pese haver tortura física no romance, é a angústia que conduz K. ao caminho do esvaziamento. E diferentemente do esvaziamento divino do cristianismo, feito em humildade, para assumir a natureza humana. Josef abandona justamente a natureza humana quando não consegue lidar com o desconhecido, não se torna um escaravelho como em outra obra de Kafka (Metamorfose), mas abre mão de si ao buscar o que não pode compreender. 

Kafka nos dá uma resposta triste da postura que temos de envergar diante do desconhecido. Dilemas impossíveis surgem à medida que conhecemos mais de nós mesmos. Escolhas e caminhos se tornam mais nebulosos enquanto nossas percepções se definem. O peso do desconhecido e do incontrolável nos assombram, assim como assombravam Kafka. Aquilo que está além da capacidade humana entremeia diversas de suas obras, levando, inevitavelmente, a um fim trágico. Não é uma revelação que enfraquece o final, é apenas a forma com que Kafka lidava com os dilemas inexpugnáveis de seu âmago, e deixa bem claro no personagem Josef K. Ao vislumbrar o incontrolável, a mente kafkiana produz pavor, fobia e angústia. Aqui, é o medo que perdura solitariamente na dança sobre a linha do equilibrista, a esperança cai em vertigem.

Um pouco de cinquenta anos depois da primeira publicação de “O Processo”, uma outra forma de encarar o incontrolável nos foi apresentada através do peculiar humor britânico de Monty Python. Em uma esquete de cinco minutos, protagonizada por John Cleese, vemos como a corpulenta máquina da burocracia é retratada – e satirizada – assim como Kafka fez. Em “Ministry of silly walks” , o absurdo começa logo no início, quando vemos o funcionário do “Ministério da Caminhada Ridícula” andando (perdoem-me pois não consigo sequer traduzir precisamente o nome do ministério). Não há como descrever, apenas veja. 

Chegando ao escritório, o funcionário já se desculpa pelo atraso já que sua caminhada estava ficando cada vez mais esquisita, fazendo-o demorar um pouco mais. Decerto, apenas isso poderia atrasar um inglês. No gabinete, um cidadão solicita apoio governamental para poder desenvolver sua caminhada. O personagem de Cleese então diz ao citadino que sua caminhada ainda não era estranha o bastante. Ao dizer isso, Cleese levanta e rodeia a sala, explicando o porquê da caminhada do rapaz ainda não ser boa – ou ruim – o suficiente. O detalhe está no diálogo, que é simplesmente irreconhecível. Durante a gravação, as pessoas riam tão alto, que Cleese não se preocupava com o que falava.

Os roteiristas de Monty Python observaram uma situação incontrolável e sorriram com ela. Kafka muniu-se da burocracia e elaborou um romance soturno e claustrofóbico. John Cleese e seus amigos suscitaram gargalhadas. Evidentemente, não intento equivaler a profundidade de um dos principais romances em língua alemã com uma esquete, por mais icônica que seja. O ponto é: diante do incontrolável em Monty Python – que no contexto da esquete e de “O Processo” é a burocracia – não é o medo que dança sozinho na linha do equilibrista.

Ler “O Processo” nos faz refletir sobre a profundidade da natureza humana e sua fragilidade, nossa debilidade perante ao peso do incontrolável. Monty Python não nos ensina a controlar o indomável e nem é a pretensão do grupo de comédia. Eles temperam a problemática com uma ironia inusitada, é como se reconhecessem que não há controle, e tudo bem com isso. Enquanto Josef K. – o personagem de “O Processo” – se debate buscando respostas e as rédeas de seu dilema, a companhia britânica apenas se diverte com a impotência. E, ao gargalhar, há uma clara confissão de que de fato não podemos dominar tudo. Diante do peso do incontrolável, Kafka nos aponta o problema, Monty Python vislumbra uma elucidação: não pare, sorria e continue andando, mesmo que a caminhada não seja a mais normal de todas.

Sobre o autor:

Temóteo Mata é piloto de navio, formado em Ciências Náuticas e gosta da maioria das obras que já foram provadas pelo tempo. Conta alguns contos sobre cotidiano, ficção e história. Sempre que pode, assiste Senhor dos Anéis e The Office.

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