Incal: a graphic novel evangelística de Jodorowsky
Algumas obras ficcionais estabelecem marcos e fundações sobre os quais gerações e gerações posteriores constroem suas casas. Algumas dessas obras são areias efêmeras, momentâneas e circunstanciais. Em contrapartida, outras são como rocha, um fundamento firme que é capaz de sustentar uma Fundação (tal qual Asimov) imorredoura. Incal permeia o segundo grupo.
Não objetivo tecer comentários que estragam o prazer da leitura da graphic novel, no entanto, como todo clássico, o final de Incal é apenas uma parte que glorifica o todo. Não há qualquer perda em saber dos rumos da narrativa, apreciar a digressão de Jodorowsky encarnada por Moebius é uma experiência que nos coloca em um enlevo sublime, apreciando toda página e cada quadrinho subsequente da narrativa.
Dito isto, peço que me perdoe de possíveis spoilers, e usarei o mínimo possível para dizer o que mais me seduziu no quadrinho. A melodia geral da trama é simples, um detetive baixo nível, em um futuro distópico, recebe uma missão quase-divinamente-impossível de salvar a humanidade através de um artefato chamado Incal. É rude ser tão simplista assim, mas como disse, usei notas simplificadas para dar tônica à melodia, porém a harmonia que Jodorowsky usa para contar a história que é fascinante.
Incal surgiu de uma tentativa frustrada de Jodorowsky produzir Duna, de Frank Herbert. Estavam envolvidos na produção de Pink Floyd à Salvador Dalí. Jodô se uniu a Moebius para criar as artes conceituais e o story telling. Pondere, por um momento, aonde Jodorowsky pretendia chegar. Se o projeto tivesse avançado, estaríamos falando sobre ele hoje, mas estamos falando sobre seu filho bastardo. O que restou do que ele e Moebius imaginaram virou o Incal.
Quando me referi a digressão, a intensão era literal. Como na antiga tradição hebraica da oralidade, Jodorowsky narrou, improvisando, a história para que Moebius pudesse delinear seu traçado. Cidades verticalizadas que causam vertigem e elefantes brancos voadores são apenas dois dos legados que Moebius deixou através do Incal. Ele harmonizou perfeitamente a melodia de Jodorowsky. Uma ciranda perfeita que une a narrativa de Jodorowsky e o traço de Moebius. Para se ter uma pequena ideia do aspecto geral de Incal, uma adaptação cinematográfica foi anunciada tendo Taika Waititi como diretor, e não há pessoa melhor para executar esse plano.
Logo no início, Jodorowsky nos dá o tom da história que quer contar. Quando John Difool se joga da “Alameda do Suicídio” – e isso acontece na primeira página – recostei-me na cadeira e pensei: “isto pode ser interessante…”. No quadrinho, os balões de diálogo são fartos de palavras imensamente vagas para se nomear a loucura ensandecida que é o ambiente, verbetes imensos que sabe-se lá o que querem dizer, um verdadeiro vernáculo que flerta com o bizarro. Jodorowsky lança mão de diversos mitos, crenças e lendas. Encontraremos facilmente referências de várias religiões em Incal, a começar pela influência mais escancarada: o baralho de Tarô. O autor se baseia em algumas cartas para criar arquétipos de personagens e até mesmo a progressão da narrativa.
Assim como 1812 de Tchaikovsky, ou Bohemian Rhapsody do Queen, Jodorowsky e Moebius nos tocam um recital crescente, impressionante e empolgante. Não há regressão, o clímax da história está na última página. Mesmo ao ler apenas os últimos quadros, só acompanhando Difool desde o início te mostrará a grandeza do clássico. A possível salvação do planeta reside em algo que ainda está por vir. Jodorowsky deixa claro sutilmente desde o início, quando pouco a pouco nos introduz aos personagens e mostra a relação deles com o artefato. O Incal é um instrumento poderoso para isso. A esperança que surge milagrosamente em um mundo caído e dissonante.
Não fica muito claro o motivo do Incal – aqui me refiro ao item quase-mágico – querer salvar a humanidade, ele apenas o quer. Uma esperança que apenas alguns poucos vislumbram. Por muitas vezes, o protagonista – John Difool – era impelido a agir conforme a causa, mesmo a despeito de sua vontade. Uma expectativa incomum, encarnada em um aparato pitoresco que conduz John para o último fio de possibilidade. Só uma eucatástrofe tolkienista é capaz de restaurar o que há muito se perdeu.
Meu desejo não é clarear sua experiência, sim instigá-la. Seus pressupostos farão o resto nesta catarse imaginativa que é Incal. Uma dica bem prática que posso dar é: o primeiro volume, sozinho, já é a experiência máxima. Apesar de haver Incal, Antes do Incal e Incal Final, o primogênito por si só já possui toda história fechada e bem construída. Os seguintes, claramente, possuem todo seu valor, porém não há como negar que a grandeza maior está na obra inicial. Não se preocupe em ler os três, o Incal lhe mostrará o que fazer assim que conhecê-lo.
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Sobre o autor:
Este texto foi escrito por Temóteo Mata.
Temóteo Mata é piloto de navio, formado em Ciências Náuticas e gosta da maioria das obras que já foram provadas pelo tempo. Conta alguns contos sobre cotidiano, ficção e história. Sempre que pode, assiste Senhor dos Anéis e The Office.