A melhor série de comédia já feita tem uma citação que volta e meia aparece por aí: “Eu gostaria que houvesse uma maneira de saber que você está nos bons e velhos tempos antes de realmente deixá-los.”
Saudade e nostalgia são sentimentos muito particulares. O gatilho que os traz à tona pode variar de acordo com o momento, com nosso humor durante o dia, com a lembrança de alguma viagem, de uma conversa, com um cheiro de bolo à tarde. Saudade é guardar uma pessoa, um momento, um lugar de uma maneira tão particular que é impossível que outro a sinta como você. “A Casa”, quadrinho escrito por Paco Roca, é uma história sobre saudade, e uma daqueles tipos mais tristes: a de um bom pai que se foi.
A história acompanha os irmãos Vicente, José e Carla, que, após a morte do pai, retornam à casa de veraneio da família para limpá-la e colocá-la à venda. Pode parecer aquele velho clichê da reunião que vai ensinar a eles o verdadeiro significado do que é família (e talvez seja mesmo), mas a cada memória e lembrança despertada, vamos descobrindo que é muito mais do que isso.
Já escrevi brevemente sobre outra obra do mesmo autor por aqui, e é incrível como ele consegue, apesar da história relativamente simples e de tom autobiográfico, abordar temas tão universais e, ainda assim, fazer com que possamos nos identificar e nos ver naquela situação, mesmo com nossas particularidades. O Sr. Antonio é aquela figura clássica do pai de origem humilde que fez de tudo, a vida toda, para conseguir dar aos filhos a vida que ele não pôde ter. Como trabalhador que prestava serviços a pessoas em melhores condições do que ele, Antonio procurava, à sua maneira, proporcionar à sua família os mesmos momentos felizes que ele observava enquanto trabalhava. A ideia para a construção da casa parte do desejo de ter um pergolado anexo à ela, onde sua família poderia se reunir para fazer as refeições juntos, assim como ele havia observado na casa de seu chefe. Colocando os filhos para ajudá-lo na construção durante as férias, a casa vai tomando forma ao longo dos anos e ganhando essa característica mais pessoal, tendo a “cara da família”. Ao mesmo tem, também vão sendo construídas as memórias que direcionam a narrativa do quadrinho. O Sr. Antonio é o típico “pai brasileiro sem camisa” (apesar da história não se passar no Brasil e ele usar camisa), que não consegue parar quieto, cuida da horta e faz toda a manutenção na casa. É perceptível, logo nos primeiros quadros, como a casa fica vazia e se degrada rapidamente sem a presença dele.
Descobrimos a história de Antonio por meio das memórias dos filhos. É na perspectiva deles que a história se desenvolve. E a cada lembrança, cada interação com a casa, faz com que eles repensem a relação que têm uns com os outros, com suas famílias atuais e com cada momento vivido com o pai. São sentimentos diversos. Desde o agridoce de Carla, que se alegra por o pai ter conhecido a neta, mas também sente a dor por ele não ter podido passar mais tempo com ela e criar essas lembranças boas, passando pelo carinho prático de José, que se esforça para cuidar da horta do pai com a mesma dedicação, mesmo que ele se sinta desprezado, até o sentimento disfarçado de racionalidade de Vicente, o mais velho, que sente o peso da responsabilidade de tomar as decisões e de bancar o “chefe” da família na ausência do pai.
Vencedora do prêmio Eisner em 2020 na categoria de Melhor Edição Internacional, “A Casa” é uma história tocante sobre rememorar os bons momentos, valorizar aqueles que amamos e refletir sobre como podemos demonstrar isso enquanto ainda podemos. É sobre retomar a união perdida ao longo dos anos, olhando para aquilo que foi construído, e de fazer ali um lugar onde a saudade pode encontrar um lar.
Sobre o autor:
Este texto foi escrito por Matheus Campos
Matheus Campos é formado em análise e desenvolvimento de sistemas, meio seminarista, viajante da terra média, fã de quadrinhos e acha brega falar de si mesmo na terceira pessoa.