Rushing or Dragging?
Alerta de gatilhos:
Este filme conta com cenas de violência, linguagem obscena, algumas cenas de abuso psicológico e o texto estará cheio de spoilers.
Vamos refletir um pouco sobre ritmo, mentores abusivos e os efeitos disso na vida. Quem já assistiu La La Land sabe da paixão do diretor, Damien Chazelle, por Jazz. Se você não é músico ou não é tão fã de música, vou tentar explicar o gênero bem por cima. O Jazz é um estilo de música originário do Sul dos EUA, na região de Nova Orleans, a sua criação foi feita por musicistas negros, e o gênero conta com muita improvisação e é extremamente complexo de executar. Vou deixar uma releitura aqui do clássico “Smells like teen spirit – Nirvana” pra você entender um pouquinho mais da sonoridade desse estilo, mas se acalme, clique só quando tiver lido tudo, ok? (sei que se você for embora pro Instagram não volta nunca mais)
“Whiplash – Em busca da perfeição” é daqueles filmes que te põe na ponta da cadeira, dão agonia e levam o espectador a um estado de incômodo e sudorese por 107 minutos. Talvez você, assim como eu, tenha ido ver o filme por causa da cena do tapa – sim, essa mesma da capa do texto. Essa é apenas uma das tantas cenas que geram bastante desconforto. Ofensas são rotineiras na relação de Andrew, jovem baterista que busca impressionar o mestre, que lidera a banda de maior reconhecimento da faculdade: o temido Fletcher que ofende a tudo e todos para instigar os seus liderados.
A parte técnica do filme é elogiadíssima (fotografia, edição e som), mas vou me ater à relação mentor e aprendiz. O filme usa uma história conhecida do Jazz para justificar os comportamentos de Fletcher. Essa história é importante, pois ela aumenta a história original e dá a Fletcher o direito de tentar “decapitar” seus alunos. E a história é que um dia o jovem Charlie Parker, saxofonista, com 16 anos, erra as notas, perde o ritmo e faz Jo Jones (estrela do Jazz) parar de tocar sua bateria, na história real Jones arremessa o cymbal (prato de bateria) nos pés de Parker, no entanto, Fletcher diz que o prato foi arremessado na direção da cabeça do saxofonista, Parker esquiva-se da morte e faz promessas que voltaria ainda mais forte. A volta por cima de Parker é real e ele virou ícone do mundo da música com carreira longeva.
Legenda: Cena aonde Fletcher “aumenta” a história real
Aqui abaixo uma reportagem do The Guardian sobre o fato famoso no mundo do Jazz:
https://www.theguardian.com/music/2011/jun/17/charlie-parker-cymbal-thrown
J. K. Simmons brilha no papel de mentor sem escrúpulos, ele encarna o metódico, organizado, que muda versões e se aproveita de fragilidades para esmagar seus discípulos. No começo do filme ele marca um horário com seu baterista iniciante, mas a banda só chega 3 horas após, ele descobre informações familiares a fim de humilhar publicamente o aprendiz e coroa o batismo de Andrew com essa cena abaixo (calma, ainda não dê play), ele leva o seu novo selecionado para um ensaio, começa com clima leve e começa a pressioná-lo. Ele não se preocupa em ensinar corretamente, ele não corrige os erros, ele o humilha até que perceba a sua própria falha, até que arremessa uma cadeira em direção de seu aluno. É agora que vemos a história (parcialmente verdadeira) de Charlie Parker contada na parte do final do filme como a força que move Fletcher em sua loucura. “Não há meios que precisem ser respeitados desde que eu entregue o próximo Charlie Parker”. O chefe olha no olho do seu subordinado e pede que conte o tempo da música, ele olha pra Neimann e diz “Why do you suppose I just hurled a chair at your head, Nieman?” (Por que você acha que atirei uma cadeira na sua cabeça, Nieman?, em tradução livre). O maestro leva o seu relacionamento abusivo ao nível de normalização e arremessar cadeiras é aceitável para ele. O diálogo prossegue com o jovem respondendo que o motivo foi estar fora do tempo, erro fatal pra qualquer baterista que se preze, pois eles são os metrônomos (equipamento de marcação de tempo) humanos de uma banda. Aqui o abuso passa ao nível físico. Ele pede ao baterista que conte o ritmo em 1-2-3-4, e no fim de cada compasso ele acerta um tapa no rosto do baterista. O chefe pergunta: “Now, was I rushing or I was dragging?” (“Agora, eu estava acelerando ou atrasando?”), até que Nieman responde que estava acelerando a condução da música. (Pode dar o play)
Mais tarde, há outra cena que vale destaque para entendermos a mente de um assediador: Fletcher mente sobre um ex-aluno que sofreu um acidente de carro. Mas, descobrimos após o acidente de carro sofrido por Nieman, que o Sean Casey homenageado na cena abaixo (sim, esse vídeo será um passeio pela essência temática do filme), se matou por sofrer de ansiedade e depressão, provocados pelo assédio de seu mentor. Entretanto, Fletcher não conta isso aos seus alunos e não se arrepende pelos seus atos. Ele vive para formar um Parker, não importa quantos Casey ou Neimann sofrendo acidentes de carro ele deixe pelo caminho. Vemos que uma marca dos obcecados é a falta de auto responsabilização dos seus atos.
Falaremos agora da cena do jantar. Esse é o momento em que Neimann começa a mostrar o seu lado obsessivo: ele não se sente valorizado como seus primos e ele não é popular, mas acredita que deve receber mais crédito por isso. O rapaz desdenha dos feitos de seu primo por jogar numa divisão inferior de futebol americano, e diz que não precisa de amigos ou pessoas próximas, pois Charlie Parker não precisava de amigos, só um Jo Jones (o que arremessou pratos de bateria no pé, não na cabeça) seria necessário. Para o jovem baterista, só os obcecados se entendem e eles não têm tempo para mesas enfadonhas de tios tediosos. Seu pai o repreende e diz que morrer cedo e de overdose não é um bom modelo de sucesso. Aqui Neimann o responde, mas quase conseguimos ouvir o mesmo desejo doentio pelo sucesso que movia a Fletcher: “I’d rather die drunk, broke at 34 and have people at a dinner table talk about me than live to be rich and sober at 90 and nobody remember who I was” (“ Eu prefiro morrer bêbado, falido aos 34 e ter gente falando na mesa sobre mim, do que viver rico e sóbrio até os 90 e ninguém lembrar quem eu fui”) . Aqui vemos que Neimann teve seu lado obsessivo extraído pelo mentor, mas que já estava lá antes de se conhecerem.
Sim, eu sei que eu desmontei o filme do Chazelle e peço desculpas por isso. Mas o filme foi só o ponto de ignição para reconhecermos algumas marcas de líderes maus, que em nome da grandeza estão dispostos a nos moer. E agora vamos à parte final do filme. Há aspectos técnicos que poderiam ser destacados, como disse acima, mas hoje é dia de darmos atenção a este enredo. E Prometo que no fim do texto deixo mais um vídeo de curiosidade.
A última parte do filme começa com o reencontro de pupilo e mestre, Fletcher foi responsabilizado por seus atos de ter provocado problemas psicológicos em seus alunos, Casey é o exemplo máximo disso, e Neimann é quem denuncia o seu mentor e também algoz. Ele é demitido do seu cargo importante. Em paralelo, Neimann larga as baquetas e vai pra longe da vida de musicista apaixonado por Jazz. A cena que vimos no começo do texto é o retrato desse reencontro. Fletcher tenta convencer Neimann a uma última dança, elogia-o, diz que nenhum baterista era tão bom como ele era, mesmo que no passado nada disso fosse claro para Andrew e que todos os outros eram apenas para pressioná-lo a ser sua melhor versão. Talvez você já tenha passado por isso em algum relacionamento, e se te parece familiar, é por isso que estamos conversando, para que aprendamos a reconhecer o funcionamento da cabeça de uma pessoa tóxica.
Aqui vai a parte que nos incomoda do filme. Neimann aceita participar da apresentação e sentimos como se num filme de terror alguém saísse da cabana para saber qual a razão do barulho. Falamos nas pontas das poltronas ou sofás: “Não, Neimann, esse cara é ruim”. Neimann, como nós, toma algumas decisões questionáveis e essa é uma delas. Além de ser às vezes um egocêntrico insuportável numa mesa de jantar, replicar a obsessão do seu mentor e perder um relacionamento promissor, aqui ele aceita uma última dança com aquele que havia ferido sua alma profundamente. Vamos acompanhando a preparação, a ansiedade de Jim Neimann e acontece o que temíamos. Nosso baterista foi enganado e humilhado de forma pública por Fletcher. Droga! Nós sabíamos, estava tudo lá, como ele se submeteu a isso de novo!?
É, a gente às vezes tem todas as perguntas certas, mas quando nós respondemos a essas perguntas só sai um gaguejo que nem faz as cordas vocais vibrarem. Muitas vezes voltamos à cena na qual fomos tão maltratados. E aqui não falo com condenação, apenas constatação: somos Neimann. Após a humilhação absoluta no palco que tanto sonhou, o baterista que já havia sangrado por aquelas músicas (eu consultei bateristas e sei que sangrar com treino é bem improvável), mas esteticamente Chazelle nos leva a ver o limite do nosso companheiro, que tem muita fome pelo Jazz e pouco amor por sua própria vida. Ele decide sair do palco.
Talvez aqui seja a parte que você se encontre, sua vida foi até o limite e você calculou que essa construção era cara demais, agora é hora de largar o seu “jazz”. Mas talvez você faça parte de um grupo raro, o dos insaciáveis, talvez você olhe para o sofrimento e diga: “eu vou pôr ele sob meus pés e subjugá-lo”. Neimann era do segundo tipo. Ele volta ao palco, brilha e encara o seu mentor, executa a dificílima melodia, cheia de mudanças de tempo, viradas insanas e que te deixa assistindo e pensando: “Que tipo de fibra esse personagem tem?’
Na verdade, não sei. Não vou responder porque não tenho tanta fibra assim, mas ele performa, e performa nos termos daquele que deveria instruí-lo mas que o quebrou. Ambos tinham uma devoção por aquela arte que os fazia em algum ponto semelhante, como na mencionada cena do jantar onde já havia ficado claro que Neimann só queria viver o Jazz. Ele vai até às últimas consequências e vence o seu desafio. Mas, algumas questões surgem no final desse filme: Qual o custo da vitória? Vale a pena vencer mesmo que se morra no caminho?
Enquanto termino esse filme, com todas as pulgas do mundo atrás da orelha, eu só penso que a roda da violência se perpetuou, um mestre mal venceu e Neimann venceu. Mas isso custou o que ele era. Existe alguma coisa que valha a pena trocar a vida?
Deixo aqui o áudio da cena final, já que eu não dei muitas respostas, pelo menos podemos ir nos encaminhando para o fim da reflexão com uma performance de tirar o fôlego.
Áudio cena final
Aqui você talvez esteja se perguntando, “eu não sou músico, nem pretendo ter uma banda”, ou até dizendo “eu toco com os amigos pra tirar um barato”, “toco em uma igreja e só os irmãos”, você me arrastou por 1900 palavras e como vai terminar esse texto?
Fuja de lideranças abusivas, pois a grandeza não é tão grande assim! Epor mais que eu seja um apaixonado por música, provavelmente ser o músico mais admirável por jazzistas que amam o século XX não farão Charlie Parker viver para sempre.Em algum momento todos os nossos nomes serão esquecidos, e quando um último neto disser seu nome, seu legado estará apagado. Isso nos dá certa leveza também pra não nos acharmos tão grandes.
Pra acabar, a música é uma desculpa pra falarmos sobre como lideranças podem nos quebrar no caminho da grandeza. Revendo algumas partes desse filme eu pensei que Fletcher era o vilão absoluto, mas refleti que Fletcher tirou também um outro de si mesmo de dentro de Neimann, que tinha já o desejo pela grandeza acima de tudo. Se eu puder terminar esse texto dizendo alguma coisa, direi mesmo sem poder, se dedique pra valer com aquilo que estiver a sua mão, na jornada obcecada pela grandeza não vale a pena jogar objetos metálicos ou cadeiras naqueles que amamos, então pare pra tomar um chá de camomila sem açúcar, abrace seu cachorro e dê um beijo em quem você ama, não é muito, eu sei, mas se eu soubesse a receita vida estaria vendendo um curso :D.
Pra quem curte um conteúdo mais técnico:
Curiosidade bônus – O erro que quase inviabilizou o filme
Sobre o autor:
Este texto foi escrito por Lucas Lima
Este texto foi revisado por Rilson Joas e Chris Schettine
Formado em publicidade, trabalho como corretor de seguros em SP, fã meia boca de quase tudo, vou tentar te convencer a ler Cornwell de vez em quando e nos vemos em uma parede de escudos.
Se o filme nos gera incômodo, o texto nos aproxima como seres humanos que podem se identificar na dor. Obrigada por nos elucidar a conclusão de que a vida pode ser bela no seu mais simples capítulo …”pare pra tomar um chá de camomila sem açúcar, abrace seu cachorro e dê um beijo em quem você ama”…