Morrer uma vez pode ser terrível, mas acredite, morrer repetidamente é ainda pior, especialmente quando você é o único que lembra de tudo. Bem-vindo ao “Groundhog Day”, um subgênero de fantasia e ficção científica centrado em loops temporais. O nome deriva de um antigo filme estrelado por Bill Murray, chamado “Groundhog Day” (conhecido como “Feitiço do Tempo” no Brasil). Nesse tipo de história, existem regras simples: o protagonista percebe que, por algum motivo desconhecido, está preso em um período específico de tempo, que pode variar dependendo da narrativa. Ele é o único que se dá conta dessa repetição, e quando certas condições são satisfeitas (como a morte ou a chegada de um determinado momento), o tempo retrocede e tudo recomeça. Todas as ações realizadas pelos personagens são desfeitas, e somente o protagonista mantém a memória dos eventos passados.
Dentre as histórias desse gênero, uma das minhas preferidas é “All You Need Is Kill”, escrita por Hiroshi Sakurazaka. Nessa história, acompanhamos Kiriya Keiji, um soldado japonês inexperiente prestes a enfrentar sua primeira batalha. Ao contrário do que dizem jovens com pouco juízo e adultos com menos juízo ainda, a guerra é um paraíso, e aqueles envolvidos nesse inferno desejam apenas sobreviver. No entanto, as chances de sobrevivência são baixas, especialmente para um soldado novato como nosso protagonista. Como era de se esperar, ele morre rapidamente. Porém, para sua surpresa, acorda novamente em sua cama, um dia antes da batalha. Assim, a história tem início.
“All You Need Is Kill” foi originalmente publicada como uma novel e, posteriormente, transformada em um mangá em dois volumes desenhados por Takeshi Obata (um dos criadores de Death Note, caso o nome lhe seja familiar). Essa história também ganhou uma adaptação cinematográfica hollywoodiana estrelada por Tom Cruise¹ e Emily Blunt. O texto a seguir buscará fazer comparações entre as diferentes versões da história, evitando spoilers (será possível evitar os spoilers? Não tenho certeza, mas se você tem receio deles e deseja aproveitar a história diretamente, vá para o final do texto, onde encontrará links para o filme e o mangá).
Legenda: Capa da novel e pôster do filme.
Em primeiro lugar, vamos abordar o tom das diferentes mídias. Tanto a novel quanto o mangá de “All You Need Is Kill” possuem um tom mais cansado e melancólico, concentrando-se na guerra e em seu impacto no protagonista. Enquanto a novel explora essas mudanças através de monólogos internos, o mangá utiliza elementos visuais para mostrar como os olhos do protagonista vão perdendo seu brilho ao longo dos capítulos. Já o filme, embora apresente algumas mudanças no protagonista, tem pouco tempo para que essas mudanças sejam absorvidas. A narrativa do filme se concentra em pequenas missões e nos passos necessários para concluí-las.
Em relação aos inimigos, cada adaptação possui suas particularidades. Na novel, os inimigos são descritos como sapos inchados, aparentemente menos ameaçadores, porém os mais resistentes entre as três mídias. Já no mangá, eles possuem um formato mais próximo a uma esfera e utilizam ataques de longo alcance com mais frequência que nas outras mídias, também são desenhados de forma a parecer sempre ter a boca aberta, pronta para devorar o que estiver à sua frente. No filme, entretanto, os inimigos têm formas que lembram vagamente grandes predadores quadrúpedes da Terra (tigres, lobos, etc), porém são compostos por longos filamentos e aparentemente não possuem ossos, são os mais rápidos dos três e daí vem seu perigo. Além disso, suas origens também diferem. O filme apresenta uma nova origem vaga, típica de filmes de ficção científica. O mangá não dá tanta importância para a origem, enquanto a novel se aprofunda um pouco mais nesse aspecto, fornecendo um pano de fundo que abre possibilidades para uma continuação.
Legenda: Mimics nas HQs e filme.
Como mencionado anteriormente, a guerra é um inferno, nisso todas as versões concordam, porém cada mídia possui uma maneira diferente de abordar esse fato. A novel foca nos efeitos psicológicos da guerra no protagonista, explorando seus medos, traumas e desespero diante da repetição contínua da batalha, e apesar de comentar um pouco sobre os eventos a nível mundial, não conseguimos sentir tanto o impacto da guerra nos outros países. O mangá consegue mostrar bem os soldados em combate, mas peca na falta de espaço para desenvolver e aprofundar essas cenas, principalmente devido ao seu número limitado de capítulos, cenas adicionais no campos de batalha favoreceriam a narrativa e acrescentariam camadas. O filme, apesar de ter menos tempo de duração para explorar a história, é o que melhor retrata a guerra, mostrando o esforço conjunto da humanidade, a superioridade do inimigo em combate, a ineficácia dos soldados em produzir resultados na guerra e a fragilidade das vidas humanas. No entanto, esses aspectos são menos explorados devido à natureza do filme, que se enquadra no gênero de ação.
No que diz respeito às armaduras e aos combates, a novel faz uma tentativa de descrevê-los, mas o mangá é onde as Jackets (armaduras de combate) brilham. Essas armaduras foram criadas para permitir que os humanos realizem feitos impossíveis normalmente, tanto em termos de poder quanto de velocidade. O filme apresenta exoesqueletos lentos e desajeitados, enquanto a novel nos dá descrições que, infelizmente, não são suficientes para realmente visualizarmos o potencial das Jackets. É no mangá que vemos os humanos equipados com as armaduras e como isso faz diferença na guerra. As Jackets não são apenas armas, mas também fornecem proteção que garante que os soldados possam sobreviver ao encontro com um inimigo superior que poderia facilmente matá-los. Pense nelas como versões da armadura do Homem de Ferro que não voam e nem soltam raios, você com certeza iria desejar uma se estivessem no meio de um combate com alienígenas. Além disso, os combates no mangá são mais elaborados, apesar das limitações de espaço nos quadros, Obata desenha lutas espetaculares e consegue passar a noção de movimentos fluídos, precisos e poderosos. Já o filme, porém, tinha muito potencial para explorar esse ponto, mas optou por focar mais em tiros e explosões ocasionais, sendo relativamente genérico quando comparado a outros filmes onde protagonistas igualmente usam alienígenas como alvo de balas.
Legenda: Jackets nas HQs e filme.
Quanto aos relacionamentos, a novel se destaca por apresentar diálogos mais profundos, permitindo que compreendamos as relações e as escolhas dos personagens. Infelizmente, o mangá opta por reduzir as interações entre os personagens, entretanto possui a vantagem de contar com elementos visuais, onde podemos acompanhar as reações dos personagens durante as interações. Já no filme, é difícil falar sobre relacionamentos aqui, pois há apenas um em destaque e ele segue o padrão esperado de um filme americano, sendo previsível e se limitando ao necessário, como eu queria mais diálogos e cenas olhando para o nada, Cruise certamente poderia entregar mais e por um momento deu esperança que pudesse ser o melhor dos três nesse aspecto.
Amarrando as pontas, “All You Need Is Kill” é uma história que possui nuances e abordagens diferentes em cada mídia. A novel se aprofunda nos efeitos psicológicos da guerra, o mangá se destaca nas cenas de combate, enquanto o filme se concentra em ação e missões. Cada versão tem seus pontos fortes e fracos, oferecendo experiências distintas para os fãs da história.
Você pode conferir o filme aqui.
E o mangá aqui.
1. Um easter egg, o personagem que o Tom Cruise interpreta não é o mesmo protagonista da novel, porém seu nome é Cage, que possui a mesma pronúncia de Keiji e faz referência a uma cena da novel.
Sobre o autor:
Este texto foi escrito por Lino
Lino Sousa é formado em Ciência da Computação e trabalha como desenvolvedor de software, é amante de mitologias, fantasia e qualquer história com magia. Gosta de falar sobre poesia, webnovels e webtoons.