Transposição: cinco clássicos adaptados para quadrinhos

C.S. Lewis, em seu sermão “Transposição”¹, traz à tona a dificuldade de se adaptar algo de um contexto mais elevado a outro mais singelo (seu argumento se refere especificamente a esfera divina e o plano terreno). Tal transposição gera, no entanto, um certo esvaziamento das nuances do simbolismo inicial ao chegar em um outro ambiente. Lewis nos diz que a relação quase nunca é biunívoca, ou seja, é quase impossível haver uma relação direta de um elemento X de um sistema para um elemento x de outro – com mesmos significantes e significados. Schopenhauer², com seu humor azedo característico, chegava mais longe ao ser enfaticamente contra a tradução de textos, conduzido pelo mesmo argumento de Lewis. Talvez a semelhança desses dois eruditos pare por aí. 

Em que pese o contexto linguístico a que Lewis e Schopenhauer se referiam, façamos um exercício de abrangência e coloquemos todas as transposições entre mídias distintas em questão.  As adaptações estão em nosso cotidiano com relativa frequência e bastante sucesso – haja vista a popularidade dos heróis da MARVEL depois do MCU. Algumas reforçam o sentimento de “é melhor deixar como está” de uma obra (afinal, creio que, como eu, você preferiria não ter visto o Super Mario Bros. de 93), outras são bem-aventuradas e atingem um novo contexto para desbravar e conquistar um público diferente – Arcane, por exemplo, firmou-se e desprendeu-se com elegância do imaginário exclusivo dos jogadores de League of Legends. 

Independente do caso, a dificuldade mais flagrante é trazer o sentido puro do original utilizando a base de linguagem (verbal ou não verbal) diferente do cenário final. Clássicos são clássicos por muitos motivos, seus autores criaram obras que perduram por muitos anos, atemporais, constantes e atuais em qualquer momento. Lê-los – ou ouvi-los – é criar um imaginário em que cada leitor constrói à sua maneira. Para mim, Capitão Ahab, de Moby Dick, apresenta-se com aspectos díspares do quadrinista francês Christophe Chabouté, por exemplo. Assim como o excêntrico Simão Bacamarte, o alienista de “O Alienista”, possuía características próprias no imaginário de seu criador Machado de Assis e outras distintas das gravuras de Fábio Moon e Gabriel Bá.

Resumindo toda essa amolação (sim, estou tentando te engabelar): se a tradução, por exemplo, já possui suas adversidades, transpor uma obra para uma esfera diferente é ainda mais ardiloso. No entanto, alguns quadrinistas foram extremamente felizes ao realizar um trabalho espinhento de adaptação. Captaram o sopro vital da criação primária, deram cor (ou não), traços, características e vida a algumas das histórias mais notáveis da humanidade. E é isso que veremos a seguir.

Moby Dick de Herman Melville, por Christophe Chabouté

Uma obra colossal, de 1851, considerado por muitos um dos principais romances norte-americano de todos os tempos. Denso, abrangente, um épico aventuresco que funde diversos elementos valorosos em seu relato. Sendo uma história tão conhecida em todo mundo, muitas representações dos personagens já permeavam o imaginário popular. Mas ainda faltava uma, e só descobrimos depois que vimos. Chabouté é presença constante em recomendações de quadrinhos, e não é em vão. Possui um traço econômico que expõe com precisão sentimentos e emoções. Exatamente o que Moby Dick precisava. Diante de tudo o que já existia, incorrer na repetição era um risco grande. Chabouté faz muito com pouco, e estabelece em sua graphic-novel o tom singular que a torna sem igual, digna da narrativa original.

O Anel do Nibelungo de Richard Wagner, por P. Craig Russell

Talvez adaptar um livro para Russell fosse usual demais. “O Anel do Nibelungo” é um conjunto de quatro óperas épicas do compositor alemão Richard Wagner de 1876. Não é uma ópera com quatro atos. São quatro óperas que temporizam quatro noites e um total de quinze horas para serem apresentadas do início ao fim. Uma obra-prima. Em poucas palavras, Wagner lançou mão de ingredientes das culturas germânica e escandinava para contar a história de um anel mágico forjado por um anão (o nibelungo) e uma série de desventuras causadas entre o embate de deuses imortais e heróis mortais (alô, Tolkien). A dificuldade de se transpor uma obra audiovisual de tal envergadura para o quadrinho é formidável, mas Russell obteve êxito. Por fim, observe como o quadrinista adapta a conhecida “Cavalgada das Valquírias” da obra original para a nona arte.

O Alienista de Machado de Assis, por Fábio Moon e Gabriel Bá

Pessoalmente, considero “O Alienista” (1882) o melhor livro de Machado de Assis, uma novela rápida, extremamente bem-humorada, com uma crítica contundente e nevrálgica. Simão Bacamarte é o personagem principal, um médico psiquiatra portador dos mais modernos tratamentos oriundos da Europa que decide fundar um manicômio chamado “Casa Verde” para cuidar dos cidadãos tresloucados de Itaguaí, Rio de Janeiro. Um dos méritos de Machado é dar profundidade e acidez em um ritmo acelerado, além da própria narrativa como um todo, que é um deleite. Fábio Moon e Gabriel Bá são quadrinistas brasileiros com notória expressão e adaptaram com maestria a insanidade transbordante que é a obra original. O livro é uma sucessão angustiante de acontecimentos e reviravoltas. Moon e Bá souberam empregar os traços certos para vivificar o desvario geral da sociedade itaguaiense do século XIX. 

O Velho e o Mar de Ernest Hemingway, por Thierry Murat

Publicado em 1952, “O Velho e o Mar” é uma novela vencedora do Prêmio Pulitzer que se lê em um dia. Narra a experiência de um velho chamado Santiago em mais um dia de pesca. Solitário e cansado, um revés de sorte fisga seu anzol e o resto, como dizem, é história. O tamanho do livro é inversamente proporcional à sua carga emocional. O autor imprimiu muito de seus desencantos na obra, como resultado, uma narrativa triste, fatigante e que deixa um sentimento amargo do que poderia ter sido, mas não foi. Por favor, não tome como desestímulo, acompanhar Santiago, um velho pescador sem sorte, no dia mais dificultoso de sua vida é um alento para repousarmos nossa esperança no terreno mais firme possível. Murrat parece não sentir as dificuldades da adaptação citadas por Lewis. A transposição de ritmo, sentimentos e emoções acontecem na mais perfeita harmonia. Uma equivalência formidável para a funesta experiência do velho Santiago.

Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, por Rodrigo Rosa e Eloar Guazzelli

A narrativa, publicada em 1956,  nos apresenta o personagem Riobaldo, já retirado de seus trabalhos como jagunço, contando sua história para um interlocutor desconhecido. O livro transcorre em um capítulo único, e a sensação é a de estar sentado em alguma casa simples do interior, ouvindo a história cativante de sua vivência. Para alguns, seria exagerado, mas não posso deixar de ser honesto com minhas sinapses pós-leitura: ao terminar o monumental livro de Guimarães Rosa, deparei-me com o mesmo sentimento de finalizar Guerra e Paz, de Tolstói. Veja bem, são livros completamente diferentes, épocas, contextos sociais, geográficos e políticos inigualáveis entre si, mas a sensação de estar diante de uma obra feita com tanto esmero e profundidade era a mesma. Parece-me que Rodrigo e Eloar também foram comovidos pelos contos de Riobaldo e Diadorim (personagens principais), e ficou bem claro na transposição que realizaram. Pesa sobre o romance gráfico a limitação de resgatar a beleza do vocabulário que fica evidente no livro, porém, sua vantagem repousa sobre o traçado bem resolvido e envolvente do quadrinista Rodrigo Rosa. Entendo que o livro de Guimarães Rosa gera uma certa estranheza no primeiro momento (comecei e parei pelo menos três vezes antes de superar o distanciamento inicial), o quadrinho resolve isso com qualidade e ainda nos leva a conhecer a comovente história de Riobaldo e Diadorim.

Notas:

1 – “O Peso da Glória”, C.S. Lewis, Thomas Nelson, página 65

2 – “A Arte de Escrever”, Arthur Schopenhauer, L&PM Pocket, página 39

Sobre o autor:

Temóteo Mata é piloto de navio, formado em Ciências Náuticas e gosta da maioria das obras que já foram provadas pelo tempo. Conta alguns contos sobre cotidiano, ficção e história. Sempre que pode, assiste Senhor dos Anéis e The Office.

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