4 Quadrinhos para amantes de música
A música tem um poder surreal de nos contar e fixar histórias. Épicos são escritos de forma lírica e, deixam assim, a narrativa fazer marcas em nós. Às vezes deixamos nosso sangue nas faixas que escrevemos e ouvimos, somos afogados por ondas invisíveis que nos submergem em sentimentos diversos e, quando menos esperamos, nos vemos completamente rendidos, entregues a canções que traduzem o que não conseguiríamos dizer tão facilmente.
A música, assim como outros tipos de arte, pode ser tida como um reflexo da alma de um homem. Ela possibilita que outros vejam, de forma poética e ritmada, o mundo através daquilo que é cantado ou tocado. Ela expressa nossos contextos, nossos segredos, expõe emoções e revela nossas circunstâncias.
E foi pensando exatamente nisso que eu (Luxdêi), e o Matheus Campos, separamos 4 HQ’s que tratam a música como seu tema principal. Então, coloque o seu álbum preferido para tocar e acompanhe as indicações.
1. Blues. Robert Crumb. (Editora Veneta)
Se você já ouviu frases como: “Onde foi para toda aquela magnífica música dos nossos avós?” ou “As músicas de hoje em dia são aPOPcalípticas”, então tenho algo para te falar.
Robert Crumb, um dos reis das HQ’s undergrounds, nos traz em sua obra Blues, um retrato da evolução ou regressão (assunto delicado…) da cena musical norte americana. A graphic novel contém um compilado de histórias que são acompanhadas de uma narração quase que documental sobre a influência do blues, folk, rock e, mais tardiamente do pop, sobre os estadunidenses. O quadrinho nos leva à biografias de artista como, por exemplo: Charley Patton, Robert Johnson e Bessie Smith; sátiras sobre artistas e consumidores, em contos como “É a vida” e “Quadrinho bebop cubista”. Além de histórias de degradações silenciosas e contemplativas como em “Uma breve história da América”.
Brincando o tempo todo com o conflito de gerações e fazendo críticas a trágica indústria musical, Crumb nos leva a refletir sobre duas certezas: a primeira, que a música é a alma da cultura, e a segunda é que, talvez, já tenhamos passado por tempos melhores mas, ainda assim, há quem nos faça ver que a cultura é iluminada.
2. Balada para Sophie. Filipe Melo e Juan Cavia. (Editora Pipoca e Nanquim)
Inveja e admiração muitas vezes se confundem ou estão tão intrinsecamente ligadas que fica difícil perceber a linha tênue que as separa. Isso é o que vemos nesta belíssima obra escrita por Filipe Melo que, além de autor desta história, é um exímio pianista. Aqui, acompanhamos a história de Julien Dubois – ou talvez não seja sobre ele, como ele próprio sugere – um pianista idoso, ranzinza e recluso em sua casa. Julien não gosta da ideia de falar de si e, por isso, não costuma dar entrevistas. No entanto, uma estagiária de jornalismo ganha a afeição do músico e passa a relatar os eventos de sua vida.
A história de Julien é contada através de flashbacks, nos quais ele relata à jornalista toda a trajetória de sua infância, seus estudos, fracassos, oportunidades perdidas e ascensão ao estrelato… E de como teve toda a sua vida impactada quando conheceu, ainda na infância, um outro pianista – um gênio da música – François Samson.
Nascido nos anos 30, Julien é de uma família riquíssima e desde cedo tinha uma rígida rotina de estudos no piano. Já François era filho do zelador do teatro, com acesso limitado ao piano, mas com uma centelha de talento natural – ou até mesmo divino – que faltava em Julien. Ambos se conhecem em um show de talentos mirins, onde a performance de François é melhor que a de Julien, mas o poder financeiro acaba sendo mais atrativo aos olhos dos jurados do que o talento. Esse fato acaba sendo refletido durante toda a história.
Essa relação de admiração e inveja conduz a jornada de ambos os pianistas, mostrando as escolhas que cada um fez durante a vida. Enquanto François cresce se dedicando à música clássica e, muitas vezes, sendo colocado em segundo plano, Julien escolhe tocar qualquer coisa pelo dinheiro, numa relação com seu empresário que tem um “quê” de Elvis, fazendo sucesso rapidamente, mas com aquele sentimento de ter vendido sua alma. Isso o faz refletir sobre seu passado, sobre sua música, seus arrependimentos, e o leva a pensar se, de fato, sua vida valeu a pena ser vivida dessa forma.
Agora que fiz essa tentativa de resumo, quero te convidar a se deixar levar pela fluidez e beleza da arte de Juan Cavia, que te deixa vidrado em cada página. Os desenhos são de encher os olhos e conseguem, de alguma maneira mágica, transmitir ao leitor a sensação visual de estar ouvindo cada melodia executada durante a história. Fica a sugestão, também, de acompanhar a HQ ouvindo essas músicas e, quando chegar ao final da história, procurar no Youtube o próprio Filipe Melo tocando, no piano, a peça que dá nome a essa obra.
3. Paul está morto – Quando os Beatles perderam McCartney. Paolo Baron. (Editora ComixZone)
Se és um bom fã dos garotos de Liverpool, então tu sabes da existência de uma teoria da conspiração que diz que: o Paul McCartney morreu e foi substituído por um sósia tão bom, que nem os próprios colegas de banda perceberam a diferença de primeira. Pois, veja bem, é essa teoria que dá base para a história.
Colocados em uma trama investigativa, vemos John Lennon, George Harrison e Ringo Star colapsarem com notícias pesadas, se envolverem em um mistério sobre o paradeiro do McCartney, enquanto, em paralelo a isso, acontecem flashbacks de momentos em que a banda revolucionária transbordava criatividade em estúdio.
A arte da HQ é um espetáculo à parte. Ernesto Carbonetti flerta com a discografia da banda, onde em certos momentos a arte em preto e branco, e mais sólida nos remete ao álbum “With the Beatles”, e em outras partes, ele brinca com as cores e faz uma viagem com as linhas, nos lembrando do psicodélico “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”.
Mas, o que separa mesmo os fãs dos ouvintes menos dedicados, é justamente a brincadeira que acontece o tempo todo nessa graphic novel, de misturar curiosidades e fatos reais vividos no estúdio na Abbey Road e na trajetória dos Beatles, com a conspiração da morte de um dos maiores nomes da música dos últimos tempos. E aí, seria você capaz de discernir as farsas e as verdades?
You stick around now it may show… You know i believe and how. (;D)
4. Shamisen – Canções do mundo flutuante. Guilherme Petreca e Tiago Minamisawa. (Editora Pipoca e Nanquim)
Para aqueles curiosos (sim, vou te poupar de abrir uma nova aba para pesquisar, por enquanto), o Shamisen é um instrumento musical japonês de três cordas, sem marcações no braço, feito numa estrutura de madeira e tem sua caixa acústica coberta de couro animal. Sua forma de tocar se assemelha a outros instrumentos de corda (como banjo ou mesmo o próprio violão), mas com uma dificuldade de aprendizado bem mais elevada e, justamente por isso, os músicos que tinham a intenção de ganhar dinheiro tocando o shamisen, precisavam ser realmente muito bons. Some toda essa dificuldade ao fato do instrumentista ser cego. Pronto, temos a protagonista dessa graphic novel brasileira, mas com toda atmosfera nipônica, escrita por Tiago Minamisawa e lindamente ilustrada pelo Guilherme Petreca.
Haru, como eu disse anteriormente, é cega. Sua história começa triste, quando ela é deixada, ainda bebê, na porta de um tocador de shamisen. Como era esperado, ela aprende a tocar o instrumento e, agora adulta, passa a ganhar a vida com a sua música. Durante uma de suas apresentações, ela conhece um kappa, uma criatura do folclore japonês humanoide, semelhante a uma tartaruga, que vive nos rios e lagos, e,ao ser gentil com essa criatura, Haru tem, agora, a habilidade de enxergar os deuses.
Essa é uma história um tanto peculiar. Nossa história é basicamente essa. Acompanhamos a jornada de Haru, agora que ela tem esse contato maior com os deuses, e como ela aprende com eles, como os ensina e, também, como está sujeita às ações deles, sejam as gentis ou as furiosas, fruto de vingança. Mas, apesar de ser aparentemente simples, sua peculiaridade se encontra em todo sentimento e diferentes sensações que os autores conseguem transmitir ao longo da história, em cada encontro da Haru, nos detalhes da cultura oriental que são colocados em cada página, nas perguntas que somos levados a fazer a nós mesmos, sobre o papel que desempenhamos no mundo, as experiências que vivemos, sobre como a música nos encanta e nos ajuda a dar sentido a algumas situações que passamos.
Para nos auxiliar nessa experiência de leitura, a HQ tem um QR Code que nos direciona à uma playlist com algumas canções tocadas num Shamisen, que vão nos levando a mergulhar nessa belíssima obra e que, ao final, assim como acontece com a Haru, saímos diferentes dessa experiência que, assim como toda boa música, vai continuar refletindo em toda nossa vida.
Bônus: Já que o assunto é música, separamos uma playlist especial, com 4 atos que servirão para apresentar a você o estilo de cada uma das HQ’s. Então desfrute daquilo que é o tom das graphic novels aqui citadas.
Sobre os autores:
Este texto foi escrito por Abílio Luxdêi e Matheus Campos.
Abílio Luxdêi é estudante de artes visuais e teologia. Atualmente vive dentro de um submarino amarelo.
Matheus Campos é formado em análise e desenvolvimento de sistemas, meio seminarista, viajante da terra média, fã de quadrinhos e acha brega falar de si mesmo na terceira pessoa.