4 quadrinhos sobre o cotidiano para esquecer um pouco dos super-heróis

4 quadrinhos sobre o cotidiano para esquecer um pouco dos super-heróis

Ok, ok. Antes de me odiar, não é que eu não goste de super-heróis.
Como toda criança brasileira que lia quadrinhos, depois de conhecer meus amigos do bairro do limoeiro, era inevitável que minha paixão por esse incrível mundo cheio de collants, máscaras, clones, kapows, Kirby dots e órfãos que combatem o crime começasse a aparecer e formar esse alguém que vos escreve e que viria a ser um adulto fã de quadrinhos. Então, saiba, eu amo histórias de super-heróis. As páginas me arrancavam suspiros. Como não sentir empatia por cada perrengue que o Peter Parker passa? Não sentir a dor da perda precoce dos pais do Bruce Wayne? Ou como não vibrar com o grito de “estou farto”, dado pelo Superman da terra 2 ao desferir o último golpe no Anti-monitor?

Porém, assim como tem acontecido nos cinemas atualmente, é um gênero que começou a ficar saturado. Em meio a diversas crises, aniquilações, guerras civis e secretas, cada mega evento sempre serviu a um único propósito: tornar acessível ao público essas histórias que começaram a ficar confusas e difíceis de acompanhar por conta de uma cronologia tão vasta. Os filmes começaram a se utilizar da mesma estratégia que é usada há anos nos quadrinhos: eventos grandiosos, sagas multiversais, a “morte” ou retorno de um determinado personagem, uma realidade alternativa onde o destino dos heróis se mostrou diferente, a subversão do gênero, mostrando que os heróis não são tão bons como aparentavam ser. É justamente essa necessidade de grandeza e de eventos com escalas cada vez maiores que acabam fazendo com que o público sinta falta de histórias mais simples, com dramas mais pessoais.

Felizmente, a nona arte não está refém das histórias de heróis ou, mais especificamente, do panteão da Marvel e DC. Se, por um lado, nós temos nos cinemas um repertório gigantesco de gêneros e subgêneros de filmes onde podemos fugir das grandes sagas, clones, homens com cueca por cima da calça, viagens no tempo e multiversos, e nos emocionar com situações mais cotidianas, não é diferente com os quadrinhos. Por isso, hoje quero indicar quatro HQs que falam sobre o cotidiano. Sobre a vida na cidade pequena, sobre as tristezas da velhice, sobre como nossas histórias se conectam com outras de maneiras que nunca esperaríamos… Ou simplesmente sobre um banco de praça.

1. Cidade Pequenina (Camilo e Aldo Solano, Editora Pipoca e Nanquim)

Sabe aquela típica cidadezinha de interior, com igreja na praça, gente sentada na frente de casa fofocando e onde todo mundo se conhece? Essa graphic novel é sobre isso. Ao longo de 19 histórias, os irmãos Camilo e Aldo Solano contam diversos “causos” que se passam na cidade de São Manuel -SP. Passando por figuras excêntricas e queridas, como o Seu Botina, até um homem que jurava que era mais rápido que um carro, nós somos levados a um passeio por essa cidade através do belíssimo traço cartunesco dos autores, aproveitando a companhia de cada morador, ouvindo cada história que parece contada pela vó, e apreciando toda a beleza que só o interior consegue nos proporcionar.

2. Rugas (Paco Roca, Editora Devir)

Nessa história acompanhamos o Emílio, um ex-gerente de banco, agora idoso, que começa a apresentar sinais de Alzheimer. Já nos primeiros quadros vemos seu filho tendo dificuldades em lidar com os desafios da perda de memória e, por conta disso, decide interná-lo em um lar para idosos. É nesse local que acompanhamos não somente a progressão da condição do Emílio, e sua luta para não sucumbir ao esquecimento, como, também, os dilemas de outros idosos do asilo. Apesar dos momentos tristes (principalmente se você já precisou conviver com algum ente querido com essa doença) e de apresentar um cenário mais pessimista sobre o envelhecer, o autor consegue trazer leveza e bom humor à obra. A sua representação gráfica do Alzheimer é única, como você pode observar já na capa da HQ e em suas primeiras páginas. Rugas nos leva a refletir sobre a velhice, sobre a solidão, sobre o que de fato valorizamos e procuramos lembrar, e sobre como poderemos ser em algumas décadas. Como escreve o autor no posfácio: “Dizem que quando você se olha no espelho e começa a se parecer com seu pai é sinal de que está envelhecendo”.

3. Condado de Essex (Jeff Lemire, Editora Mino)

O que um garoto da fazenda, fã de super-heróis, dois irmãos amantes de hóquei que agora estão afastados, e uma enfermeira do interior têm em comum? Nessa história, Jeff Lemire localiza seus personagens numa versão fictícia do condado canadense onde ele nasceu e cresceu. Através deles, nós conhecemos 3 histórias em diferentes épocas dessa comunidade e descobrimos como elas se conectam, nos levando a refletir sobre perdas, arrependimentos, solidão, família, perdão e outros temas. Lemire consegue tratar desses temas com muita sensibilidade, e isso se dá por sua habilidade de construir personagens que conseguem criar essa conexão e identificação com o leitor, nos levando a observar esse mundo pelas lentes deles. É difícil comentar essa história sem entrar num terreno de spoilers, por isso te convido a vestir sua capa, sentar ao lado de Lester e observar a vida no condado enquanto ela acontece.

4. Um pedaço de madeira e aço (Christophe Chabouté, editora Pipoca e Nanquim)

Essa lista não é um ranking mas, sem dúvidas, essa é a história que eu mais gosto. Chabouté tem se tornado o meu autor favorito da atualidade. Suas histórias são maduras, contemplativas e, em conjunto com sua belíssima arte em preto e branco, trazem ótimas reflexões. Seja através da representação de uma alma no purgatório, de um taxista percorrendo a cidade de Nova York ou, como é o caso desse quadrinho, através de um banco de praça, Chabouté nos cativa, emociona e nos leva a observar melhor a vida nos pequenos detalhes. E sobre o que é essa história? Bom, como já diz o título, o personagem principal é um banco de praça. Calma, não veremos aqui reflexões e pensamentos de um banco que se incomoda com a ferrugem que cresce nos seus pés ou sobre os cupins que corroem sua madeira. A ideia é mais simples. Nós acompanhamos o cotidiano ao redor desse banco. Um casal de idosos apaixonado, o nascimento da amizade entre um guarda e um morador de rua, o descobrimento e desenvolvimento de uma gestação. Enfim, situações cotidianas que presenciamos a todo tempo, mas que o autor consegue chamar nossa atenção a olhar para elas com mais proximidade. Sem qualquer balão de diálogo ao longo de suas mais de 300 páginas, Chabouté nos mostra que mesmo um banco de praça, bem escrito, é capaz de nos emocionar muito mais do que a morte de um personagem super poderoso que, com certeza, vai retornar na próxima edição.

Sobre o autor:

Este texto foi escrito por Matheus Campos.

Matheus Campos é formado em análise e desenvolvimento de sistemas, meio seminarista, viajante da terra média, fã de quadrinhos e acha brega falar de si mesmo na terceira pessoa.